por Diego Viana – O vídeo copiado acima me  incitou a escrever por diversos motivos, e olha que eu não estava com  disposição para escrever. É um trecho antigo, bem sei (de 2008), mas eu  não o tinha visto porque estava fora do país e preocupado com questões  mais egoístas. Vi agora, e basta. Porque há muitas coisas importantes a  serem ditas a partir da imagem, como há muitas coisas belas. E há ainda  coisas belas e importantes. Eu poderia até, talvez, declarar meu voto em  Dilma “por causa” desse vídeo. Seria mentira, mas uma mentira mais  poética do que a verdade, qual seja, que pesei as opções e escolhi –  coisa sem graça, ainda que correta. O mais honesto que posso ser no  quesito eleitoral é que o diálogo digno de Eurípides aí acima mudou em  muito minha visão de Dilma Rousseff; eu a via como candidata da  continuidade, e isso estava bem. Agora, minha admiração por ela é  pessoal e muito maior, à parte ela ser candidata ou não. Mas eu voltarei  a isso; agora, quero elencar algumas das coisas belas, importantes e  capitais que encontro neste vídeo.
 Primeiro, peço que o leitor observe o tom de voz do nobre senador  José Agripino, do famigerado PFL, ao fazer seu discurso disfarçado de  pergunta para a então ministra. É tom de mofa. Ele está seguro de si.  Sabe que as câmeras estão voltadas para ele. Sabe que a mídia está mais  do que disposta a disseminar trechos de sua intervenção para estremecer  as bases de um governo a que se opõe. Ele usa curvas e rodamoinhos  retóricos bem mais antigos do que o general romano que empresta o nome a  sua família (Agrippa, principal assessor de Augusto). O senador se  repete. O senador abre os braços. O senador lança sorrisos marotos  sabe-se lá para quem (mentira, sabemos que é para nós, através das  câmeras). Hesito em fazer o paralelo entre, de um lado, o tom sarcástico  com que ele joga contra Dilma sua declaração de que mentia sob tortura  para lhe impingir a pecha de mentirosa e, de outro, a tática dos  interrogatórios policiais (e não só policiais), mais velha do que andar  para a frente, de fabricar contradições em depoimentos para confundir o  depoente. Resta pouca dúvida quanto ao lado em que Agripino estava nos  anos 70 e, horror dos horrores, continua estando.
 Deixemos de lado o senador. Vamos à ministra, ainda sem laquê, ainda  sem lentes de contato, ainda sem a obrigação de se conter para aparecer  bem diante da incensada opinião pública. É interessante como muita gente  tem chamado a atenção para a pouca beleza da presidenciável – só  lembrando que o último presidente bonitão que tivemos foi um desastre e  não durou muito no cargo. Pois eu digo: poucas vezes se haverá visto  coisa mais bela e pungente nas salas do Congresso quanto o desprezo  estampado em néon na cara da ministra, ouvindo as circunvoluções  retóricas de seu interlocutor. Imóvel, impassível, a mulher assiste ao  circo de alguém que tenta desmerecer sua luta e seu sofrimento. Ela não  reage. Ela só espera. E a única imagem que temos do que ela sente por  trás da espera é esse asco magnífico.
 Enfim, chegamos ao ápice: a resposta. Aqui é que está o cerne da  beleza e o início da importância do vídeo. Dilma começa falando como tem  falado em suas entrevistas, debates e comícios: mal. Ela ainda está  tentando se controlar, como tem se controlado durante a campanha. Cita  uma torrente de datas, como se isso fosse necessário. Está claramente  enrolando. Repete frases, não por técnica retórica mal aprendida, como  tinha feito Agripino, mas porque sua cabeça precisa de tempo para se  acalmar e formular respostas. Pelo visto, ela sentiu o golpe.
 Mas depois ela deixa de lado os escrúpulos e diz o que realmente quer  dizer. A partir daí, é um espetáculo. Ela cresce como um daqueles  grandes felinos africanos prestes a dar o bote. E o bote é implacável.  Dilma expõe para o pobre senador todo o orgulho de ter lutado contra a  tirania, pagando caro por isso, com o próprio corpo e a própria  juventude. Ela ensina ao interrogador engraçadinho o que é enfrentar o  arbítrio e a desfaçatez, fazendo da mentira pontual uma arma contra o  reinado da mentira generalizada e instituída. É importante e é belo que  tenhamos no governo não aqueles que sustentaram a tortura, mas aqueles  que a sofreram e, hoje, sabem colocar em seu lugar os sustentáculos da  tirania. Isto é, em seu lugar figurativamente, porque concretamente, seu  lugar é longe do poder e, em muitos casos, atrás das grades (como na  Argentina).
 À época do ocorrido, muita gente comentou sobre o rosto de José  Agripino nos contra-planos enquanto Dilma o escorraçava, desmontava e  humilhava. Diziam que ele ficou com “cara de idiota”, o que não deixa de  ser uma boa descrição. Mas o que importa não é isso. Agripino se viu  diante de algo que ele absolutamente desconhece, como acontece com a  maior parte de seu círculo. Sua cara não era bem de idiota, mas de  vazio. Explicarei.
 Mas para explicar, primeiro preciso passar além da beleza do vídeo e  chegar à parte mais importante do que há nele: a questão da democracia.  Pois bem, a hoje candidata à presidência demonstra, nessa resposta  exaltada e demolidora, um entendimento impecável daquilo que é o conceito  de democracia. Ela coloca em pouquíssimas palavras sua ideia de  democracia, e é uma descrição perfeita como jamais vi em qualquer  político brasileiro. E isso, falando de improviso.
 Destaquei um trecho da fala dela, embora não seja onde está o  principal. Mas é o único trecho onde consigo resumir bem o argumento  acima. Ei-lo: “O que mata na ditadura é que não há espaço para a verdade  porque não há espaço para a vida. Algumas verdades, até as mais banais,  podem conduzir à morte.” O trecho tem o objetivo de sustentar algumas  outras afirmações, como uma das primeiras: “Qualquer comparação entre a  democracia e a ditadura só pode partir de quem não dá valor à  democracia”, além de uma parte mais extensa em que ela explica ao  senador que, estando numa democracia, ela tem a liberdade de comparecer à  comissão de inquérito e dizer a verdade, enquanto ele tem a liberdade  de fazer perguntas para estabelecer a verdade, porque ambos estão num  plano de igualdade existente apenas numa democracia.
 Mas são três os conceitos capitais do trecho em questão que  demonstram a compreensão claríssima e formidável que Dilma tem da  democracia (e que eu gostaria de poder ver nos editoriais do jornal que  chega aqui em casa, mas posso esperar sentado). O primeiro é o espaço, o segundo é a vida e o terceiro, que não está no trecho, mas aparece muitas vezes na fala de Dilma, é o corpo.  (Dilma diz: “Feliz é o país que não tem heróis desse tipo. Resistir à  tortura é muito difícil e a tentação de dizer a verdade é muito  grande”.)
 O corpo é um conceito ligado à política desde sempre. Platão  já fazia a analogia entre a cidade e o corpo; Agostinho, idem. Hobbes,  nem se fala: está na capa de seu livro mais célebre, desenhada segundo  suas próprias instruções. Deleuze e Guattari subvertem essa imagem  quando falam do “Corpo sem Órgãos”, mas deixemos isso de lado. Existe  uma contra-corrente também bastante antiga, que data do período  helenístico, estoura com Spinoza e subsiste até hoje em autores como  Claude Lefort e Giorgio Agamben. Para esses, a questão não é nem de  estabelecer uma analogia entre a política e o funcionamento do corpo,  nem de traduzir o corpo do soberano como uma espécie de representação da  vida social. O ponto principal é enxergar na vida política um espaço  (opa, voltarei a essa noção mais tarde) de determinação para os corpos.  Ou seja, é na vida política que os corpos podem agir e, através da ação,  determinar-se, encontrar seu lugar (opa, espaço de novo), seus modos  possíveis de operar uns sobre os outros e sobre si próprio.
 Esses corpos, agindo, tornam-se pessoas no sentido pleno da palavra,  isto é, cidadãs, sujeitos políticos. Ao agir, elas têm poder, elas têm  potência, elas têm vida. Essa noção é capital. A questão da  vida e da morte, como a do corpo, também fundamenta uma infinidade de  teorias políticas. O medo da morte, da guerra de todos contra todos,  está na origem de ideias como o contrato social (pelo menos entre os  autores ingleses) e o monopólio estatal da violência legítima, de Weber.  Através da política são decididas as condições para a morte (declaração  de guerra e execução penal, por exemplo), e é estabelecido o espaço  (droga, me adiantei com esse termo de novo) onde a vida pode se  desenvolver. Figuras como o homo sacer (Agamben) e o bode  expiatório encarnam essa dupla determinação da vida e da morte,  simbolizando o processo decisório central da vida política de uma  sociedade.
 É assim que se determina o espaço político e social. Com o espaço,  determinam-se também todas as possibilidades, todas as concretudes,  todas as verdades efetivas. Dilma tem toda a razão ao dizer que, sob  tortura, numa ditadura, a verdadeira coragem e a verdadeira honra estão  em conseguir mentir. Porque, como ela mesma coloca, o diálogo é entre o  pescoço de um e a forca do outro. Em regimes outros que a democracia, o  espaço disponível é um só, determinado por atores que, no mais das  vezes, estão acima ou à parte da sociedade. É exatamente por esse motivo  que, na analogia que esses regimes fazem com o corpo, todo o  organismo representa a sociedade em geral, mas a cabeça corresponde ao  soberano, seja ele real ou imaginário. Porque é o soberano que comanda o  corpo, tendo até o poder de decepar alguns de seus membros.
 O que a democracia tem de diferente, Dilma resume muito bem: a democracia é aquilo que mantém os espaços abertos para o possível.  Claude Lefort fala da democracia como um espaço vazio. Subscrevo. Na  democracia pode haver diálogo, como coloca Dilma, porque as vias não  estão determinadas, não há uma cabeça soberana decepando um membro e  acariciando outro. A liberdade é a liberdade dos corpos, a verdade é a  verdade da vida, o diálogo é o diálogo entre cidadãos, sujeitos  políticos plenos. Para um autor como Spinoza, por exemplo, a democracia é  o regime absoluto. Vale acrescentar que ela precede todos os outros, ou  seja, qualquer outro regime é uma violência exercida justamente contra  esse espaço aberto onde operam os corpos.
 É isso que o coitado do senador Agripino não consegue entender,  enquanto Dilma o mói e descasca diante de seus pares e das câmeras. Ele  não tem a menor ideia do que possa vir a ser uma democracia, ele que  está acostumado a um mundo em que alguns mandam, outros obedecem; alguns  podem matar, outros podem morrer se saírem da linha designada pelos  primeiros. A verdadeira democracia é aquela em que todos podem, todos  têm liberdade e têm meios para agir. Nada mais distante do mundo a que  pertence José Agripino, daí sua cara de vazio diante da humilhação  imposta pela ministra Dilma Rousseff.
 Andam dizendo que a última cartada para evitar a vitória de Dilma é a  evocação de sua história como militante contra a tirania nos anos 70,  quando ela tinha, veja no vídeo, entre 19 e 21 anos, e o senador  Agripino tinha muito mais. País estranho. Este deveria ser um motivo  para promover a eleição da ex-ministra, não para evitá-la. Como se vê  pela naturalidade e a espontaneidade com que ela define a democracia e a  diferencia da ditadura, a candidata aprendeu na pele, no corpo  o sentido desse espaço público, vazio e aberto ao possível. Oxalá o  país consiga aprender também, mas de uma maneira menos traumática.
 PS: Vi o vídeo graças a meu amigo e ex-colega Manoel Galdino, do Pra Falar de Coisas.
Fonte: Amálgama