
-- Policiais no alto do Complexo do Alemão (foto:EFE) --
por Bruno Cava – Quinta passada, dia 25, eu  estava num barzinho depois do expediente, quando vi pela primeira vez a  filmagem da fuga desabalada de moradores do morro, que corriam por uma  estradinha de terra batida entre duas favelas aqui do Rio. Tentavam  escapar da favela Vila Cruzeiro, que estava sendo invadida pelas forças  do estado. Durante a correria,  era possível ver várias pessoas sendo  alvejadas por policiais de tocaia na mata (ou em helicópteros). E  ninguém ajudava, elas ficavam pra trás, desamparadas e agonizantes.
 Achei triste a cena, mas as pessoas a meu redor exultavam: “bandido  tem mais é que morrer”, “BOPE neles!”, “tem que botar o exército pra  acabar com esses vagabundos”. Nem no atentado de 11 de setembro nos EUA,  presenciei tamanho deleite da maioria diante de cenas de execução. Os  espectadores chegavam a salivar. Reviravam os olhinhos. Uma catarse.
 Natural que crises assim provoquem um clima de euforia pela cidade.  Admito que parte de mim também se empolga em tempos de comoção. Afinal,  arranca-nos da rotina e confere vibração à existência. Porém, não dá pra  engolir a execução sumária televisionada ao vivo e em cores e aplaudida  como se fosse uma cena do filme Tropa de Elite.
 Eu sei que pedir um olhar crítico da televisão brasileira seria  sonhar alto demais. Mas irritam os programas que sequer informam sobre o  que está acontecendo. Tipo, pelo menos descrever os fatos. Limitam-se a  exibir as cenas sob manchetes inflamadas, com direito a rostos  consternados de âncoras e repórteres. A situação fica posta nos termos  maniqueístas mais ignorantes, como se fosse uma guerra do bem contra o  mal, do estado bonzinho versus os bandidos maus, do cidadão de bem  reagindo ao traficante do mal.
 O jornalismo brasileiro dos principais veículos tem que acabar.   Prevalece a exaltação à violência do bem contra a barbárie do mal.  Repete-se o discurso do medo e da guerra, o fundamento de toda a  tirania. Moraliza-se um debate que é político.  Ora, a violência urbana  não é causada pela maldade na cabeça de algumas pessoas, mas por fatores  sociais, econômicos, históricos, que condicionam as relações de poder e  produzem a violência na metrópole.
 Esse discurso midiático rasteiro, reproduzido acriticamente por  tantos em suas micromídias (rodinhas, tuíter, facebook), pretende  unificar a sociedade numa cruzada do bem contra um inimigo comum. Porém  acerta gigantes imaginários. Porque não existe nenhuma relação de causa e  conseqüência entre a) invadir uma favela e “passar o rodo nos soldados  do tráfico” e b) assegurar a segurança aos cidadãos do asfalto. Não  preciso me delongar nisso, porque o Luiz Eduardo Soares escreveu com  pena de ouro sobre o pastiche midiático na questão da violência urbana,  em texto de quarta passada (dia 24) no seu blogue.
 No boteco, sem agüentar mais, me senti novamente obrigado a discordar  do que todos já tinham se posto em acordo. Se não for pra isso, então  não sirvo pra nada.
 Como assim, tocaiar as pessoas fugindo? Isso não é pra aplaudir, mas  pra vaiar. Uma coisa é responder fogo com fogo, reagir num tiroteio pra  se salvar. Outra é tocaiar um grupo se retirando do campo de batalha em  desespero. Os caras não foram só mortos, eles foram  e-xe-cu-ta-dos. Reparem que os atingidos nem carregavam fuzis. Poderiam  nem ser “bandidos”, mas moradores tomados de pânico, diante da invasão  dos caveiras.
 O coro reagiu: ah, Bruno, nem vem, todo mundo sabe que eram da facção ou pelo menos estão envolvidos de alguma forma.
 Ora, poderiam não ser bandidos, não poderiam? Em tese, poderiam não  ser. E isso basta, a dúvida. Um inocente executado ali não vale a prisão  de todos os culpados. Aliás, e se fossem “bandidos”? Tem bandido e  bandido. Tem o chefão mandante de 50 homicídios e tem o aviãozinho de 14  anos que entrega a trouxinha. E, ainda que, hipoteticamente, sejam  todos eles sem exceção assassinos sanguinários zé-pequenos  que-nem-no-Tropa-de-Elite? (O que é bem diferente do que estar somente  “envolvido de alguma forma”.) Mesmo assim, não há pena de morte no  Brasil. E, mesmo que houvesse, não seria permitida a execução sumária —  sem acusação, defesa, julgamento e apelação.
 Pergunto: até onde isso não é praxe em operações assim? Invade a  favela, mata-se, e depois sai na imprensa que “morreram X moradores da  favela supostamente envolvidos com o tráfico”. E ponto final. A  única legitimidade do estado para invadir, prender e punir reside em  sua invocada superioridade moral, em relação aos criminosos. Por isso,  se agentes do estado abusam, sem respeitar garantias básicas, sem seguir  o devido processo legal, qualquer que seja o pretexto, deslegitimam-se. Imediatamente. Sem ponderação.
 E então ouvi o inevitável: que discursinho, Bruno, mas contra o crime  organizado não pode ter moleza, aquela galera ali é parte desse jogo.
 Discordo. Pra mim, “crime organizado” se constitui de sofisticados  grupos multinacionais, com altíssimos lucros, abundantes em conchavos e  conexões com os poderosos: na política, na polícia, no sistema  financeiro (para lavar o dinheiro). A molecada que toca o varejo  é  bucha. Mesmo os “chefões” que ocasionalmente vão presos, são só um  pouquinho menos bucha. Ninguém está falando que são pobrezinhos  coitados, nem que sejam forçados pelas circunstâncias a aderir às  facções, por descaminho. Não são. Apesar disso, é preciso admitir que  tais adolescentes e jovens são totalmente acessórios e descartáveis, e  não são eles que sustentam a economia das drogas ilícitas. Na realidade,  essa gente é interceptada pela cadeia produtiva, administrada e  comandada pelo verdadeiro “crime organizado”. Fossem eles organizados  de verdade, não estariam sendo progressivamente dizimados pelas  milícias, que tendem a monopolizar o mercado.
 Pronto, a essa altura, o estabelecimento inteiro me considera um  sem-noção irremediável. Mas alguém tenta esclarecer este louco da  verdade: veja bem, agora é guerra, a bandidagem começou, pediu e  recebeu, está queimando carros, metralhando postos de polícia, com tudo  isso é natural que a sociedade queira uma resposta imediata e os  próprios moradores das favelas apóiam as operações.
 Primeiro, é tremenda ilusão acreditar em “respostas imediatas” para  problemas complexos e profundos. Desconheço questão mais espinhosa, mais  pontuada de armadilhas, do que a segurança pública no Rio de Janeiro.  No fundo, essas “respostas imediatas” camuflam outra coisa, bem mais  preocupante: estado de exceção. Isto significa: a desativação  de garantias e direitos, a tolerância de excessos e abusos, de maneira  que os atos ilegais do estado não sejam considerados delituosos, que  cada agente se sinta livre para aplicar todos os meios disponíveis. É um  cheque em branco às operações: fazer o que for preciso pra restabelecer a ordem.
 Segundo, não tem guerra coisa alguma. A rigor, guerra implica  declaração formal do Presidente da República e autorização do Congresso  Nacional, e pressupõe dois lados perfeitamente delineados, com  uniformes, bandeiras e tutti quanti. O que se tem hoje no Rio  não é sequer “guerra civil”. Não existe exército separatista, nenhuma  sedição nas forças armadas, nenhum grupo querendo depor os governantes e  instalar um novo regime. A menos que se aceitem vagas classificações:  “guerra contra o terror”, “guerra contra as drogas”, “guerra contra o  crime” etc. Porém, tudo isso não é propriamente guerra; aliás, é  qualquer coisa…
 Terceiro, não faço apologia aos grupos de varejo de drogas, e muito  menos coloco as minhas fichas “esquerdistas” nos traficantes, como se  fossem uma forma de resistência, uma forma democrática ou progressista.  Não e não. As facções ocupam territórios como se fossem feudos, subjugam  os moradores, impõem a lei do medo, não vão além de um governo  despótico bastante precário e descontrolado.
 Meu ponto é que estão fazendo as perguntas errradas. Toda a questão  está mal-colocada por causa do imediatismo, do preconceito, do  maniqueísmo e da pulsão da morte que a grande imprensa promove — a  televisão em especial. Essa percepção oblíqua é uma das principais  causas da manutenção do estado das coisas.
 Nesse momento, já sem qualquer chance de travar diálogo,  sabendo que  falaria doravante para as paredes, fui pra casa e passei a matutar  sobre a questão das questões: então, o que fazer?
 Primeiro, achar uma pergunta melhor. A pergunta  melhor, acho eu,  morador do Rio, deve orientar-se pelas causas materiais dessa mixórdia,  em que poder do crime e crime do poder (a expressão é do sociólogo Giuseppe Cocco)  estão do mesmo lado da equação e se somam, tendo como resultado o  massacre sistemático — e amiúde anônimo — de jovens negros em  comunidades pobres, nos morros e na periferia. Pode não haver o xis da  questão, a resposta definitiva, mas alguns fatores merecem atenção.
 É preciso analisar a economia por trás das ilegalidades. Como o  dinheiro e o poder circulam ao redor do comércio de drogas ilícitas.  Quem ganha? Quem é beneficiado politicamente? Quem trafica influência?  Quem define o que é tolerado e o que não é?
 Existe uma gestão do ilegal que produz lucro e sustenta campanhas  eleitorais e confere respaldo político a pessoas no poder, no estado, na  mídia. Legalizar, pra essa turma, significaria o fim de um banquete:  fim do monopólio comercial, fim do controle sobre a cadeia produtiva,  bem como maior fiscalização — logo, menos dinheiro e poder.  Para o esquemão, é fundamental que as drogas ilícitas mantenham-se um  caso de polícia, e de polícia com toda a sua carga de abuso e corrupção.  Jamais de saúde pública.
 Como efeito colateral, a “guerra ao tráfico” fragmenta ainda mais a  cidade. Na cidade sitiada, multiplicam-se muros, grades, portões,  câmeras, alarmes. As pessoas se retraem: vão de casa para o trabalho e  deste para casa — quando muito freqüentam o shopping, a academia, o  clube e outras ilhas de segurança e assepsia. O cidadão é vencido pelo  indivíduo. Desmobiliza-se a metrópole como organismo vivo da democracia,  nos seus fluxos horizontais de práticas e discursos, no seu amor comum.
 Além disso, é preciso compreender a milícia não como alternativa  menos imoral e menos bárbara do que as facções tradicionais. Com efeito,  a milícia é uma evolução política e econômica, uma forma mais  eficiente de gestão das ilegalidades, signo do limiar cada vez mais  indistingüível entre estado e crime. A milícia está vencendo porque é  uma aplicação eficiente do poder: mais rendimento, menos barulho. Como  escreveu Luiz Eduardo Soares: “o modelo do tráfico armado, sustentado em  domínio territorial, é atrasado, pesado, anti-econômico.” A carteira de  negócios da milícia não se restringe ao comércio de drogas ilegais.  Abrange toda a atividade econômica no seu território: o transporte  coletivo, a TV a cabo, a venda de “proteção”, as “taxas” de construção, a  renda dos camelôs etc. Menos do que salvação da lavoura, como raciocina  parte da imprensa, trata-se de um refinamento e aprofundamento do poder  do crime (e do crime do poder), em cima da mesma economia de  ilegalidades.
 Por isso tudo, não existe solução técnica. Não basta pôr tantos  policiais na rua, ocupar tantos morros, aplicar maciçamente as forças  armadas, tudo isso para prender X jovens-negros-pobres e executar Y  jovens-negros-pobres. E não adianta devassar as instituições pra  “arrumar a casa”. Como se pudesse desatar o nó górdio eliminando  policiais “sujos” e políticos corruptos. Ora, não é funcionando de modo  mais “limpo” ou eficiente que o sistema penal passará a defender a  sociedade. No Brasil, não há carência, mas exagero de punição. O sistema  é assim mesmo. Trata-se das raízes da história brasileira: o  poder se constituiu assim, para funcionar desse jeito. A invocação de  superioridade moral participa da farsa e serve para legitimar o crime do  poder.
 Mas, caramba, o que é o tal sistema, cara-pálida?
 Nesta questão particular, é um tripé: 1) a base histórica de  desigualdade e racismo que atravessa a sociedade toda, 2) o  funcionamento desigual do sistema punitivo (polícia, justiça, prisão),  como fiador dessa base, e 3) a criminalização de determinadas  substâncias, como motor da economia de ilegalidades, e sua produção de  discurso, poder e lucro.
 Em resumo: o problema é falta de democracia. Daí a solução passar,  necessariamente, por mais democracia. E isso se realiza com políticas concretas, a incidir sobre causas materiais, com dignóstico da situação real,  evitando cair nos vários ardis acima expostos: o espetáculo da mídia, a  análise maniqueísta, o discurso do medo e da exceção, a farsa do poder  constituído.
 Assim, à guisa de maior desenvolvimento, arrisco apresentar três  caminhos para o debate e a formulação, que possam impactar, na sua  estrutura mais íntima, os processos de violência urbana no Rio de  Janeiro, quiçá nas metrópoles terceiromundistas em geral:
 1) Políticas de desenvolvimento/urbanização de áreas pobres (ex.: PAC  das comunidades), de geração e distribuição de renda e bens sociais  (ex.: Bolsa Família, Projovem, Prouni), conjugadas intimamente com ações  afirmativas substantivas (ex.: cotas raciais na educação, nos concursos  públicos).
 2) Democratização do sistema penal, nos seus três setores: quer a  polícia (ex.: polícia comunitária, partindo do projeto das Unidades  Policiais Pacificadoras – UPP, que pode e deve ser melhorado como  instância articuladora e mediadora entre demandas da comunidade e  poderes públicos), quer a justiça criminal (ex.: criminologia crítica,  constitucionalização do direito penal, quadro de juízes e promotores  mais social/racialmente plural, fortalecimento das defensorias públicas,  acesso à justiça), quer o complexo prisional (ex.: despenalização de  condutas não-violentas, penas alternativas, revolução das cadeias como  espaços de ressocialização e não como “universidades do crime”).
 3) Descriminalização de todas as drogas ilícitas, sem exceção,  desvinculando o uso, o porte, a produção e a venda da atenção da polícia  e da justiça criminal, convertendo em problema político de saúde  pública, a ser estudado, controlado e gerido por órgãos especializados  que já fiscalizam fármacos, com regulamentação lúcida e democraticamente  debatida e aprovada.
Fonte: Amálgama